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Aconcágua, o Topo das Américas

A temporada de 1998 foi uma das mais trágicas do Aconcágua, a maior montanha das Américas, situada na Cordilheira dos Andes, Argentina. Foram 15 mortes, 5 de brasileiros e entre estes 3 que faziam a tentativa inédita de vencer os quase 3 mil metros da Parede Sul do Aconcágua.

Parti no primeiro dia do ano de 98 de Resende com mais três amigos: Jerônimo de Oliveira, Rodrigo Vieira e Ronaldo Costa. Quando chegamos em Ponta Grossa-Pr nos juntamos com mais três alpinistas daquela cidade. De carro passamos por várias cidades e chegamos a Mendoza na Argentina. Depois de 5 dias de viagem estávamos diante do Parque Provincial do Aconcágua, a 2800 metros de altitude. Começa aí o clima de uma expedição de alta montanha, a minha primeira. Como tínhamos muitos equipamentos e suprimentos para a escalada contratamos 2 mulas da empresa Aymará e pagamos cerca de 100 dólares por cada animal que levaria o máximo de 50 kg até o acampamento base de Plaza de Mulas a 4.370 mts.

Dia 07 de janeiro partimos para Confluência, a 3300 mts e onde o caminho se bifurca: de um lado a Face Sul do Aconcágua e do outro a face Noroeste. Depois de 5 horas de caminhada estávamos em Confluência. No dia seguinte fomos na base da Parede Sul a 4370 mts para que pudéssemos nos aclimatar melhor. Rodrigo já sentia as conseqüências do mal de altitude e resolveu aguardar em Confluência. Chegamos a base da imensa Parede Sul, um declive extraordinário, onde a cada hora era certo uma avalanche que provocava grandes estrondos. Logo que chegamos uma cena inacreditável: iniciava os preparativos para a missa mais alta da minha vida, com padre, hóstia, coroinhas e tudo. A face sul do Aconcágua é considerada uma das cinco escaladas mais difíceis do mundo. No dia anterior dois franceses tentavam a escalada quando uma corda que já estava na parede a algum tempo se rompeu. Um deles caiu cerca de 30 metros abaixo, mas, com muita sorte, só quebrou um braço e tinha algumas escoriações. Como eu estava preocupado com estado de Rodrigo em Confluência, não demorei muito e voltei literalmente correndo. Chegando no Rio Horcones superior, o qual na ida já fora difícil de atravessar, na volta era impossível. Fazia muito calor, quase 40º C, e o degelo provocou um grande aumento das águas. Tentei descer o rio para achar um ponto mais estreito. Achei, mas era necessário ficar pendurado com somente uma das mãos para fazer a travessia. Depois de uma boa dose de coragem passei e chegando em Confluência Rodrigo já estava bem melhor.


Foto: Dario Nascimento
Alpinistas atravessando o Rio Horcones

Dia 09 partimos cedo para o Acampamento base de Plaza de Mulas. Foram 10 horas de caminhada em meio a um deserto cercado por montanhas e forrado por muitas pedras, tornando muito desconfortável a caminhada. No início o calor era intenso mas quando chegamos próximo ao segundo hotel mais alto do mundo, o Plaza de Mulas, pegamos a primeira nevasca. Agora sim parecia que estávamos em uma alta montanha. Conferimos os nossos equipamentos que já tinham sido trazido pelas mulas e descansamos no dia seguinte. Ficamos acampados próximo ao hotel, onde somente usamos suas instalações mas dormimos nas barracas. Pagamos somente US$ 1,00 por dia. Psicologicamente acampar próximo ao hotel e não no grande acampamento base, a qual tinha centenas de barracas era melhor. No acampamento existia um posto médico improvisado onde eram prestados os primeiros socorros e também dali saia o resgates aos alpinistas. As notícias circulavam rápido e o melhor era estar afastado daquilo tudo.


Foto: Dario Nascimento
Dura caminhada de Praya Anche

Dia 11 de janeiro o tempo não estava muito bom. Jerônimo e eu como estávamos bem fisicamente e não sofríamos nenhum dos sintomas do mal de altitude fizemos o "porteño", ou seja, agora nós fizemos o papel das mulas. Levamos o excedente do material para o acampamento avançado 1, Nido dos Condores a 5350 metros. A subida interminável era feita normalmente em 8 horas. Mesmo transportando mais de 25 kg, gastamos menos de 4 horas. Assim que chegamos pegamos outra nevasca e um vento intermitente. Logo tratamos de descer rapidamente. Quando passamos pelo acampamento base, um corpo de um coreano estava estirado no meio da trilha, morto. Quando voltava do cume havia se perdido e não agüentara o frio intenso da noite. Uma boa hora para refletir e saber que todos nós estamos sujeitos a uma situação destas.

Enquanto os outros integrantes da expedição subiriam no dia 12 para Nido dos Condores, eu e Jerônimo descansamos do "porteño" e o plano era subir no dia seguinte. Mas o tempo havia piorado acintosamente e resolvemos esperar a melhora no hotel onde era mais confortável. O Hotel Plaza de Mulas recebe este nome pois toda a sua estrutura é movido no lombo das mulas: combustível para os geradores, comida, material de higiene e etc. Toda aquela estrutura em um lugar tão inóspito quanto aquele era louvável. Depois de dois dias de espera o tempo tinha melhorado um pouco e resolvemos subir e encontrar com o restante da expedição. Quando chegamos em Nido dos Condores, três dos nossos cinco integrantes que estavam em Nido havia tentado o ataque ao cume. Márcio muito afetado pelo mal de altitude não fez o ataque e Rodrigo ficou para lhe dar assistência. Ronaldo logo resolveu voltar e Wilson e Binho mesmo em um dia não muito bom chegaram ao ponto culminante e retornaram resgatando um Espanhol que estava sem forças sequer para andar. Agora quem não estava bem era Jerônimo: muita dor de cabeça e enjôo. Na noite seguinte Rodrigo e eu tentamos nosso ataque. Levantamos 4 horas da manhã, colocamos a cabeça para fora da barraca e o tempo novamente tinha piorado, e muito. Não seria prudente tentar o cume nestas condições.


Foto: Guilherme Rocha
Alpinistas na caminhada de ascensão

Amanheceu, e o dia continuava terrível. Márcio e Jerônimo não haviam melhorado. Ronaldo se sentia fraco e Wilson e Binho já cumprira seu objetivo. Nossa expedição estava praticamente sem alimentos e todos neste dia 14 de Janeiro resolveram voltar para o Brasil. Eu fiquei. Sozinho? Sozinho, mas firme no meu objetivo. Enquanto tivesse forças lutaria, pois não sou de desistir fácil. E não estava sozinho, e sim com Deus. Como o tempo em Nido dos Condores estava muito ruim, decidi despedir dos meus amigos em Plaza de Mulas e aguardar no hotel a melhora do tempo. Foi uma das decisões mais difíceis da minha vida: ver meus amigos sumir no horizonte e eu estava ali naquele ambiente gelado e cruel e praticamente sem comida.

Dia 15 acordei e descobri que estava realmente sozinho. Fui para o hotel e lá reencontrei-me com um carioca o qual já havia escalado comigo no Brasil, Nilton. Perguntei-lhe como estava seu suprimento de comida. Ele disse que tinha o bastante para dois. Me apresentou dois amigos que formaria a nova equipe: Jaime e Ricard. Uma equipe espano-brasileira. Combinamos de subir para Nido dos Condores daqui a três dias.

Dia 18 de janeiro e o tempo não havia melhorado, mas subimos mesmo assim. Passamos uma noite terrível, várias barracas quebraram com o vento forte e o frio estava intenso. Jaime, Ricard e Nilton estavam assustados com tempo tão ruim e decidiram descer. Eu novamente resolvi ficar. Uma expedição de Nova Friburgo estava por coincidência em Nido e me convidou para se juntar a eles. Definitivamente, Nilton e Ricard viram que realmente eu iria ficar e decidiram no último instante, já de barraca desmontada ficar também. Acordamos no dia seguinte e fizemos nova tentativa de ataque, mas o tempo continuava ruim. Fizemos uma reunião e votamos: fazer o ataque de Nido dos Condores ou de Berlim a 6 mil metros, mais perto do pico, mas onde as condições climáticas e os efeitos da altitude castigavam ainda mais. Fui voto vencido, todos decidiram ir para Berlim. Quando preparávamos as coisas para partir, chegaram mais brasileiros: Mozart Catão, o qual eu já conhecia desde a época do mountain bike, Alexandre de Oliveira, Othon Leonardos, Dálio Zippin e Ronaldo Franzen, o Nativo. Eles começavam o seu trabalho de aclimatação e subiram até Nido dos Condores, onde tiramos uma foto com a bandeira do Brasil. Entre os cinco da expedição que tinha como objetivo subir a face sul do Aconcágua (considerada uma das cinco escaladas mais difíceis do Mundo), Dálio e Ronaldo ainda não haviam se aclimatado e portanto ficariam embaixo dando o apoio para os demais. Perguntei a Catão como ele analisava a escalada. Mozart falou-me que a subida seria um misto de trechos em rocha, o qual as desajeitadas botas plásticas atrapalharia um pouco, alternando com escaladas em gelo não tão difíceis. Como um presságio o alpinista ainda brinca: "o grande problema são as avalanches. Tomara que uma destas não cai em cima de nós." Ainda conversando, Mozart Catão mostrou preocupação quanto ao tempo muito instável do Aconcágua, efeito do El Niño.


Foto: Guilherme Rocha
Alpinistas subindo para Nido dos Condores. Onde estão?

Dia 19 de Janeiro, subimos então para Berlim a 6000 metros. Nossa nova expedição era composta por Nilton, Ricard, Darinho do Nascimento, Jeferson e Roberto Trombada. A 6000 metros estamos acima do limite que chamamos a "zona da morte". Depois de 5000 metros o corpo entre em um processo de depreciação, ou seja, deste ponto em diante não há recuperação do organismo, ele está sempre em déficit. A performance psíquica reduz 40%, você fica meio "lerdo". O frio e o vento são ainda mais hostis. Tudo fica mais complicado. A programação era descansarmos no dia 20 e fazer o novo ataque no dia 21. Mas uma notícia péssima chega até nós. Um Guarda Parque nos avisou que a previsão indicava que viria uma tormenta e todos deveriam sair do acampamento de Berlim. Haviam cerca de 30 barracas instaladas nas redondezas. Quase todos desceram e sobraram menos de dez barracas, sendo a maioria brasileiros. Não teríamos força para retornar e subirmos novamente e ainda fazer o ataque. A solução foi encarar o mau tempo. É, e que mau tempo: parecia que o mundo ia acabar. Ventos de mais de 100 km/h, impossibilitava de andar. A temperatura chegou a -30º C e combinando-a com o vento isto resultava em uma sensação térmica de aproximadamente -75ºC. Era madrugada, dormia e acordava com o vento ensurdecedor. A cada rajada, a neve que condensava no teto da barraca, caia em minha cara. Resolvi dar uma conferida na fixação da barraca. Em uma alta montanha a barraca é fixadas com cordonetes amarrados em grandes pedras. Muitas destas pedras haviam rolado por causa do vento. Na hora que olhei a minha volta, um susto. Quase todas as barracas tinham sido destruídas. Das dez barracas, mantinham-se de pé a minha e a do Ricard. Fui ver como estava os outros integrantes da expedição. Estavam todos amontoados debaixo dos restos de sua barraca. Jeferson e Trombada procuraram abrigo em outra barraca e Dario do Nascimento foi para nossa. Dois na barraca já ficava muito apertada, imagine três. O desânimo era quase geral. Eu defendia a tese que: "depois da tempestade viria a bonansa."


Foto: Guilherme Rocha
Acampamento avançado de Berlim

No dia 21 de Janeiro já pelas 11 horas da manhã o tempo mostrava sinais de melhora. E chegaram notícias pelo rádio que o pior já passara. Começamos a preparar novamente o nosso ataque. Nossos organismos não agüentaria mais muito tempo aquele desgaste. Fazia ainda muito frio: derretia gelo para todos os integrantes da expedição e assim que a água estava totalmente em estado líquido derramava em uma garrafa térmica - a água chegava a congelar-se no ar. Fiquei nesta rotina por várias horas.

Dia 22 de janeiro de 1997, é agora ou nunca. O tempo estava bom e quase não ventava. Minha única preocupação foi o excesso de peso que levava, pois tinha em minha mochila cerca de 12 kg, quando o ideal era apenas 5 ou 6 kg. Começamos a subir e todos pareciam bem. Meu ritmo era excelente quando passei pelo Abrigo de Independência (6250 mts.) e depois de algumas horas, estávamos diante da temida Canaleta. A Canaleta começa por volta dos 6500 mts. e prossegue até o topo. Neste ponto é registrado o maior número de mortes do Aconcágua. Havia um fator agravante: não existia neve em seu percurso e sim muitas pedras soltas tornando a subida mais difícil. A altitude fazia com que nos movimentássemos cada vez mais devagar, já que, não usávamos oxigênio suplementar. Eu tinha permanecido quase 10 dias acima dos 5000 metros (zona da morte), depois que minha expedição inicial voltou para o Brasil, passei a carregar ainda mais peso do que levava e não me alimentava bem durante vários dias. Pelo menos estava bem aclimatado. E a soma destes vários fatores culminaram no esforço de subir a Canaleta. Me sentia cansado, sonolento e andava muito devagar. Por várias vezes, entrei em estado de "delírio", ou seja, estava consciente e acreditava que aquela situação não era real. Algumas vezes passavam visões que estava em minha casa. Muito estranho. Mesmo já tarde para prosseguir me concentrei e juntei todas as minhas forças, só pararia no Topo. E foi o que aconteceu. Depois de muito esforço estava na maior montanhas das Américas, registrando com fotos a minha conquista e rapidamente como já passava das 18 horas, nos preparávamos para descer. O céu apresentava algumas nuvens escuras depois de um dia de muito sol. Somente saberia que meu objetivo estaria realmente cumprido quando estivesse a salvo no acampamento, já que, na descida também acontece várias mortes, ou por exaustão, ou por se perder no caminho.


Foto: Dario Nascimento
Visão após a canaleta da face sul da montanha

Eu e meus companheiros da expedição começamos a descer e mesmo muito tonto no início da descida, cansado e com algumas indecisões no caminho, chegamos todos as salvos e felizes. A única eventualidade Jeferson e Dario do Nascimento que optaram não usar a bota plástica - quase que perderam os dedos dos pés por congelamento. Agora podia dizer: conquistei meu primeiro objetivo: pisei no ponto culminante das Américas.

Saiba mais e acompanhe tudo pelo documentário: Aconcágua, O Desafio.

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